30 agosto 2010

A família encantada - Parte 3



Os dois estavam sentados na beira do cais, jogando os pés ao vento e migalhas de pão aos peixes. Enamorados, entreolhavam-se encabulados, ela com o queixo no peito, ora olhando para os próprios pés dançando no ar, ora para ele. Ele, com olhos de vontade, esperava que o tempo o empurrasse à ação. 

O dia enamorando-se da noite, deixou-se ser encoberto pelo seu manto. Os ventos, trazendo aromas campestres, esfumavam as nuvens; as estrelas formigavam no céu, e a noite iluminava-se pelo lume do amado. A lua cheia brilhava mais do que de costume. Era a lua dos enamorados.

Cacau fez a sua mão andar tamborilando os dedos na mureta do cais até encontrar as mãos da Mel. Deu-se o encontro de mãos, olhos, e, finalmente, seus lábios se encontraram.

O Senhor do tempo, com grãos de areia, cobriu-os com o manto do envelhecimento, visto que o amor dos dois pedia pressa. O pó do tempo não acumulou nos vincos adquiridos com os anos, pois eles ainda não os tinham. Contudo, os amadureceu o suficiente para que perdessem suas características de criança. Ele o que tinha de rapaz,  tornando-se homem. Ela o que tinha de moça, tornando-se mulher. Casaram com urgência, e, logo, tiveram um filho.

A bola de capotão, por não ter os cordões untados com gordura animal, estava com alguns gomos descosturados, envelhecida. A bola de gude, devido ao desuso, permanecia jovem, apesar de algumas trincas. A bicicleta fora azeitada com bastante óleo, porém, a poeira acumulada no decorrer dos anos lhe dera uma aparência de abandono precoce.

Dedicados ao trabalho, Cacau e Mel deixaram de proporcionar ao filho, Fauser, o que a eles não lhes faltara: a infância. Já seria imperdoável, se somente isso tivesse feito, porém, fizeram pior. Deixaram de serem pais e delegaram essa função à babá.

Fauser, ainda bebê, ganhou o seu primeiro presente, dado pelos pais. Um televisor LCD. Todavia, o que Cacau e Mel deixaram de notar é que Fauser só tinha olhos para eles. Na sequência, quase initerrupta, vieram o aparelho DVD, juntamente com as mídias DVD de contos de fada. 

O tempo passava, e Fauser pouca oportunidade tinha de passar com seus pais. Sequer os conhecia pela voz. A babá, dedicada, trazia de sua casa os livros com as histórias que lia para a linda criança. Fazia isso por amar toda criança que cuidava. 

Aos sete anos, Fauser ganhou um vídeo game, por fim um computador. A sua vida resumia aos metros quadrados do seu quarto e aos passeios para brincar na pracinha do condomínio fechado em que moravam. Sempre acompanhado de sua babá.

Entristecido pela criação que Cacau e Mel estavam dando ao filho, o Senhor do tempo incumbiu a formiga a missão de recobrar o encanto dessa família.

Continua...

26 agosto 2010

A família encantada - Parte 2


Os dois se retiveram no meio do caminho, com jeito de quem lembrou de voltar para buscar algo muito importante. Cacau voltou feliz, ao ponto da própria felicidade pensar ser nele a sua morada. Ele corria saltitando, tocando os calcanhares um no outro. Mel o seguia a passos lestos.

Os dois, ao se aproximarem da bola de gude, da bola de capotão e da bicicleta, proporcionaram a esses três seres inanimados alegrias desmedidas. À bola de gude mais ainda, ao ser levada por Cacau. 

Porém, pela primeira vez, não reconheceu a mão a que estava tão acostumada. Os suores eram outros, a tremedeira descompassada não era a mesma, acusava sentimentos que ela desconhecia. A bola de gude se perguntou: em que linha da mão nossa amizade se escondeu?

O que ela não entendia era que as linhas das mãos de Cacau transpiravam outro sentimento. Sentimento esse que a bola de gude somente conheceria se tocasse as linhas das mãos de Mel.

- Toma. Ela agora é sua. – Disse Cacau a Mel, fazendo menção de entregar-lhe a bola de gude.

- Mas... – As palavras lhe fugiram.

- Esta bola me acompanhou até aqui. Um bem inestimável que lhe dou com prova da minha amizade.

Emocionada, Mel foi até a bicicleta. Como a bola de gude, a bicicleta soube de imediato que não eram  mais as mesmas mãos que a tocavam.

- Toma. É sua agora. – Mel, com doçura nas palavras, entregou a bicicleta ao Cacau.

- Não. Não posso aceitar.

- Por quê? – Perguntou Mel decepcionada com a recusa.

- Ela vale mais do que a bolinha de gude.

- Que importância tem o valor monetário quando se AM... – Cacau não a deixou terminar a frase, beijando-a nos lábios.

Ao se darem as mãos, a bola de gude foi tocada pela mão da Mel e, nesse instante, percebeu qual era o sentimento que estava aflorando das linhas da mão do Cacau. A bicicleta teve a mesma sensação quando Cacau apoiou a sua mão no selim grafitado de girassóis. Os girassóis se abriram como se aquela mão carregasse raios de sol.

As duas, juntamente com a bola de capotão, sabiam que a amizade dele por ela estava sendo substituída pelo amor. Seriam relegadas ao esquecimento. E, aconteceu como a bola de gude havia previsto: a bicicleta foi deixada em um canto da garagem misturada aos restos de ferro velho. A bola de capotão, murcha, foi enterrada em uma caixa de sapato entre outros badulaques. A pobre bola de gude teve outro, lamentável, destino: esfumou-se entre bonecas quebradas, até ser confundida com um olho de uma.

Continua...

24 agosto 2010

A família encantada - Parte 1


Toda bola de gude sonha em permanecer na mão de um menino, pois sabe que ao ser jogada no chão deixará rastros a serem perseguidos por ele. Assim, a história de ambos será escrita pelos rastros percorridos. Contudo, nem todas as certezas são compartilhadas por todos, menos ainda quando se tratam das certezas de uma bola de gude.

Quando ouviu o Senhor do tempo dizer-lhe: “Segue o seu destino Cacau...”, a bola de gude sabia que havia chegado a hora em que ele se transformaria em um rapaz. No entanto, assegurava-se que, enquanto nas mãos do rapaz estivesse, sentiria nas suas linhas a essência do menino.

Foi com um sobressalto que a bola de gude notou que escapava da mão esquerda de Cacau, e, naquele instante, teve a certeza de que nunca mais percorreria as linhas de suas mãos. A bola de gude rolou até a bicicleta e disse-lhe:

- Seremos esquecidas. Você enferrujará e eu trincarei, não pelas dobras do tempo, mas pelo esquecimento.

Incrédula, a bicicleta olhou para a bola de gude, depois para os dois. Eles de mãos dadas e olhinhos brilhantes, como a enxergar a vida mais colorida, não os viam.

 - Será? Por que você diz isso?

- Você não percebeu bicicleta. O encanto dele agora é ela.

A bicicleta girou o guidom em direção a eles, depois em direção a bola de gude, a eles novamente e por fim disse:

- Você está é como ciúmes da Mel.

A bola de gude olhou para a bicicleta bufando, depois pondo os olhos na Mel disse:

- Mel só mesmo no nome, mas ela não é nem um pouco doce.

- Não precisa dizer mais nada. Isso não passa de ciúmes e despeito por não ser mais queridinha do Cacau.

A bola de gude virou as costas para a bicicleta entristecida e não olhou mais em direção a Mel e ao Cacau.

O céu não era o mais o mesmo, e mesmo que fosse, as suas cores eram mais intensas; o brilho das estrelas fulgia mais demoradamente; os raios solares irradiavam em uma só direção, trazendo-lhes alegria; a lua, não importa qual fase, estava sempre cheia; o aroma trazido pelos ventos, em quaisquer das estações, era primaveril. 

Cacau e Mel, agora, viam o mundo pelos olhos um do outro. Por mais que o Senhor do tempo o acelerasse, e as mudanças fossem perceptíveis a todos, eles sequer as notavam, uma vez que enxergavam pelos olhos do amor, e a este tudo é atemporal.

Estava lá a mesma árvore, com várias camadas de primaveras, que um dia deitou seus galhos para que um pássaro de plumagem amarela entoasse uma canção dizendo: menino bobo. Agora que se encontrava marcada por dois corações entrelaçados, com os respectivos nomes de Cacau e Mel, a árvore pediu ao vento, entre gracejos, que levasse aos dois, além do aroma primaveril, estas duas palavras: amor bobo.

O vento, sempre gentil com a árvore, atendeu-lhe o pedido, carregando ambas as palavras. Os dois jovens, aos risos, saíram de mãos dadas, abobalhados, tropeçando nos próprios pés, tendo um ao outro como apoio. Para trás ficaram a bicicleta, a bola de gude e a bola de capotão no quintal da casa. Entreolhando-se, as três perceberam que tanto o menino quanto a menina estavam indo embora, prestes a se tornarem homem e mulher.

Continua...

22 agosto 2010

Continua...



Foi quando Cacau olhou Mel nos olhos que nosso coração congelou. Acabou, Óleo me disse. Pois é, respondi sem jeito... Mas o Óleo não se convenceu. Amor assim precisa ir mais longe.

E, numa virada de planos, esse conto que era para terminar ali, nos olhos de duas crianças, cresceu e deu frutos, espinhosos, mas não menos deliciosos.

Por isso, essa semana começa um novo conto, só que dessa vez, vocês já conhecem a maioria dos personagens. A maioria... porque está cheio de surpresas, e essas vocês só descobrirão ao longo dos capítulos!

Esperamos que vocês gostem e aproveitem tanto quanto nós aproveitamos.

E a correnteza segue, e Água e Óleo continuam juntos...

18 agosto 2010

O menino encantado - Final

(Imagem: Valdinei Calvento - "Cabelo")


A máquina do tempo fez um barulho fora de tom e as imagens aceleraram até o ponto em que o menino não reconhecia mais a si mesmo. Estava maior, parecia mais velho. O coração, contudo, descompassou como criança quando viu seu sonho passando em frente a seus olhos: a bicicleta azul com aros amarelos e selim grafitado de girassóis. Exceto que... Estava sendo pedalada por uma menina.

Sem perceber, seu queixo ficou pesado como pedra e pendeu-se, aberto, enquanto olhava, não mais a bicicleta, mas aquela doce criatura que em seu selim sentava. Os cabelos cacheados, de um tom acobreado que ganhavam mais brilho com os raios de sol, a pele sardenta de quem já tomara muito sol, a regata que revelava o ombro e a sandália de couro cru que deixava seus dedinhos tão delicados à mostra.

Olhou novamente para o Senhor do tempo, começando a entender o motivo de tudo aquilo. Mas, temeroso de deixar qualquer detalhe escapar, foi com paciência que esperou que voltassem a lhe falar.

Subindo as roupas do velho, sorria a formiga, e, no caminho que percorria, dobras acima, disse-lhe assim:

- Percebe porque lhe chamamos de rapaz? Já é hora de perseguir outros objetivos. Você provou que tem o coração bom, apesar de sua teimosia inicial. Agora, persegue a bicicleta dos seus sonhos. Ela carrega a chave para o seu futuro.

Com semblante ainda confuso, com medo de deixar um pedaço seu tão importante para trás, foi com alívio que ouviu as palavras finais ditas pelo Senhor:

- Rapaz, entendo o seu medo de deixar a meninice para trás. Não tema! Vou lhe contar um segredo, uma palavra mágica, que trará grande conforto ao seu coração. Por ela, fará grandes obras, mas encontrará sempre o caminho para esse tempo encantado.

Segue o seu destino CACAU...

Ouvindo essas palavras, sua visão ficou turva, o chão começou a girar e perdeu a estabilidade. Perdeu a noção do tempo e, quando deu por si, estava deitado, melhor dizendo, caído, no chão. Abrindo os olhos, pode ver o halo do sol, quase lhe cegando, e cachos acobreados pendendo de um rosto de anjo. Será que estou no céu?

- Cacau? Cacau! Acho que ele está acordando!

A menina riu, puxou seu corpo para deitar sua cabeça em seu colo, e lhe disse assim:

- Você é o Cacau, não é? Minha mãe é muito amiga da sua, e me pediu para vir aqui na sua casa lhe mostrar minha bicicleta nova. Você queria ganhar uma dessas, não é? Vim lhe emprestar a minha, mas, quando vinha passando vi sua bola de capotão cair bem no meio de sua cabeça e você, desabando no chão. Ai, menino, que susto!

- Menino não, corrigiu ele. Rapaz. O meu nome você já sabe. E o seu, posso saber? Ainda tonto, não acreditou quando ouviu o que ele próprio havia dito.

Enrubesceu-se a menina, e respondeu assim:

- Muito prazer, Cacau. O meu nome é Mel...

E foi quando uma bolinha de gude escapou da mão esquerda daquele rapaz, e foi juntar-se à roda, aro 26, de uma certa bicicleta azul coberta de girassóis.

16 agosto 2010

O menino encantado - Parte 4



O menino ficou decepcionado quando abriu os olhos.

- Mas estamos exatamente no mesmo lugar!

A formiga, mais do que depressa respondeu:

- Menino, não foi o lugar que mudou, e sim o tempo.

Olhando com mais atenção, pode ver novamente o halo do Sol, brilhante, e, como se saísse dele, um senhor, encurvado, mas inspirando muito respeito, que se encaminhou em sua direção. Disse-lhe:

- Ficamos todos muito orgulhosos do seu gesto ainda há pouco, rapaz.

Encabulado, o menino respondeu:

- Meu eu não sou rapaz, sou menino...

O senhor riu, deixando entrever dentes tão branquinhos que pareciam uma fileira de pérolas, e continuou, como se nada tivesse sido dito.

- Sabe, meu rapaz, há muito tempo que lhe observo. Vi seu nascimento, acompanhei quando começou a engatinhar. Estive ao seu lado quando tentava firmar suas pernas, e vibrei quando o vi pela primeira vez com sua bola de gude nas mãos. Você se lembra de quem a ganhou?

- Do meu avô... Engraçado, agora que o senhor falou nisso, sinto mesmo que já o conheço. Como se sempre, por perto, tivesse estado. Somos parentes? Por acaso vizinhos?

- Eu sou o Tempo, meu jovem, e decidi trazê-lo aqui para que você pudesse dar um passo importante em sua vida.

Foi quando o menino viu um garoto menor do que ele, de short, sem camiseta, chinelinho nos pés, correndo porta a fora, exultante com seu prêmio, bem apertado, dos perigos guardados, entre suas mãos. 

E o menino assistiu, como se sentado estivesse em um cinema, a si mesmo em seus tenros anos. A bola de gude, brilhando, novinha em folha. Sua paciência ao lançá-la e esperar que ela voltasse. O canto do pássaro, levado longe pelas ondas do vento. Menino bobo...

O Senhor do Tempo acelerou a imagem, e o menino pode assistir ao dia em que havia trocado o brinquedo pela arma, e acertado seu irmão. Percebeu mesmo que o moleque não tivera intenção em assustá-lo. Um pouco mais adiante, e pode ver a preocupação de seus pais, desprovidos de recursos para presenteá-lo com a tão sonhada bicicleta.

Eu não imaginava, foi tudo o que passou por sua cabecinha transtornada. 

As imagens se seguiam. Ele saindo de casa, não se despedindo da mãe. Ela, entristecida, perguntando ao pai se o filho teria entendido o gesto carinhoso contido na entrega da bola de capotão que era como um pedaço de seu avô. Um pedaço que, por muitos anos, fora guardado por seu pai, com o amor de quem não pode abandonar um objeto tão importante.

A alegria dos pais, e do irmão, quando ele rompeu porta a dentro, encabulado, desculpando-se pela maldade praticada e agradecendo pelo presente que ganhara. Pode ouvir o som de papéis de embrulho sendo rasgados em outras casas, e a alegria genuína de Natal alastrando-se pelo ar, levada nas asas do canário de plumagem amarela...

Continua...

11 agosto 2010

O menino encantado - Parte 3





Ele tamborilou a bola de capotão que pertenceu ao seu avô com todos os dedos da mão direita. Triste, um olhar sofrido tomou-lhe os olhos. A bola caiu de suas mãos rolando pelo chão de areia, ele a perseguiu com a vista e imaginou duas rodas, um aro, dois pedais, um guidom e um selim. 

Repentinamente seus pés pedalavam uma bicicleta azul com aros amarelos e selim grafitado de girassóis. Mas eram de outros olhos o sentimento de felicidade estampado nos seus.

Ele se sentou na calçada com a bola de capotão no colo, os dois cotovelos nos joelhos, o queixo nas palmas das mãos e trouxe os seus olhos sofridos de volta. Aos seus olhos vieram lágrimas e a tristeza de sempre.

 - Hei! Você está inundando o meu caminho.

Sem virar-se para trás, respondeu rispidamente:


- Pode parar, seu bobo. Você não me engana de novo.

- Como de novo se eu não te conheço?

- Tá bom! Você não me conhece, não conhece o seu irmão.

- Há! Há! Há! Se eu sou uma formiga e você um menino, me explica como podemos ser irmãos.

 - Formiga?!?!?!?!?!

Quando o menino olhou para baixo, uma formiga sorridente com as antenas vibrando de emoção lhe disse: Oi! 

Ainda que assustado, não se impressionou como da outra vez. Usando as costas da mão para enxugar as lágrimas, o menino logo lhe contou o motivo de tanta tristeza.

- Foi isso? Simples de resolver! Vá lá dentro, peça perdão aos seus pais e, principalmente, ao seu irmão. Quando voltar não se esqueça de trazer a bola de capotão do seu avô.

- Como você sabe que é dele?

- Essa é outra história que não me cabe contar.

- Posso trazer, também, a bola de gude?

- Sim. Depressa! O portal vai fechar a meia-noite.

Portal? Não entendendo muito o quê estava acontecendo, mas temendo estragar a situação mágica em que se encontrava, não titubeou. Girou em seus calcanhares e correu para dentro de casa.

Quando voltou era outro menino, saltitando, feliz, nada tinha de rapaz.

- Agora, chuta a bola para mim. – pediu a formiga. O menino ficou preocupado, achando que iria esmagar a pobrezinha. Mas, fez como ela havia mandado.

Na vez da formiga devolver a bola, ao invés de chutá-la de volta para o menino, chutou-a para cima.

- No três pulamos.

- Em quê? – perguntou o menino.

- Na bola, ora!

- Qual bola? Você a despachou para o alto!

- Mais atenção menino! Não vê que ela já está descendo? Um, dois, três.

- Espera, minha bola de gude caiu!

A formiga agarrou na perna da calça do menino e chutou a bola de gude para o alto. O menino, com a mão esquerda, pegou-a e guardou-a no bolso da camisa. 

E, assim, a viagem começou tranquila. 

Continua...

09 agosto 2010

O menino encantado - Parte 2




São as coincidências que trazem cores à vida. Pois, no exato momento em que ele soltou a bola de gude, uma formiga passava em direção ao formigueiro. Ao cair, a bola acionou o seu sistema de defesa avisando-a do perigo iminente. Alerta, a formiga parou, procurando saber de onde vinha a bola de gude. 

Ao mesmo tempo, a voz do irmão do rapaz surgiu atrás de uma moita dizendo, rapaz bobo, não está me vendo? A sincronicidade dos eventos não deixou margem de dúvida ao menino que, com os pés infrenes, associados ao medo, partiu em disparada, apavorado.

Repentinamente, a coragem o acometeu tão rápido quanto o medo, pois era necessário retornar para buscar a bola de gude que ele havia esquecido. Tomado dessa súbita valentia, voltou atrás, e, pegando a bola de gude, disse à formiga: eu não sou rapaz, sou um menino.

A formiga lá já não estava, mas, para seu azar, o seu irmão, que havia saído detrás da moita, estava. Rindo desmedidamente, seu irmão repetiu a frase que tanto o apavorara: rapaz bobo, não está me vendo? E, continuando o escárnio, emendou: Você achou que fora a formiga a falar contigo? O deboche crescia, até a gargalhada tomar conta de todos os sentidos do menino.

O menino não pensou duas vezes. A bola de gude foi jogada no chão e substituída por um pedregulho, habilmente lançado em direção ao irmão, que, a essa altura, já havia trocado o riso pelos pés, e saído desembestado, rumo ao horizonte. 

Mesmo longe, foi claro o barulho do pedregulho batendo no calcanhar do irmão. Podia sentir o sangue escorrer e viu o seu corpo desabar no chão. Pronto. Naquele instante o menino percebeu que havia acabado com qualquer chance de ganhar a tão desejada bicicleta de Natal. Aquela que ele havia pedido em sua cartinha ao papai Noel, dois meses antes.

De nada lhe adiantou mergulhar o mais fundo que pode e arrancar a melhor argila no barranco do rio para o feitio dos bonecos do presépio. De pouco lhe adiantou modelar o menino Jesus – esta era a sua tarefa em todos os natais - pois pior ficou. Nervoso, o menino Jesus saiu imperfeito, uma perna maior do que a outra, os braços tortos e a cabeça maior do que o corpo. 

Em nenhum momento passou por sua cabeça desculpar-se com seu irmão. Ora, ele havia lhe pregado uma peça, por que motivo deveria se desculpar com ele? Ele não entendeu que deveria pedir perdão ao irmão devido à maldade praticada, e que os atos bondosos, por si só, não fariam com que reconquistasse a bicicleta, pois atos bons são a conduta esperada de toda criança.

Frustrado, ele passou pela sala sem reparar na árvore de Natal montada, pela cozinha despercebido da mãe, que estava temperando o pernil ao mesmo tempo em que fritava a rabanada para o dia seguinte, do jeito que seu pai preferia. O clima da casa era de Natal, o dele de velório.

A alegria, realmente, somente toma conta da casa quando as crianças avançam embaixo da árvore para retirarem os seus respectivos presentes deixados por papai Noel. Para os pais não há satisfação maior do que ouvir o barulho de papel rasgando e a amplificação da alegria no riso das crianças.

Por isso, foi com imensa euforia que seus pais esperaram o dia de Natal. E este, finalmente, chegou. Foi o menino até a árvore carregando uma tristeza desmedida, chutando o ar por saber que a bicicleta não estaria lá. Olhou o relógio e ouviu as engrenagens que movimentam os ponteiros moverem-se lentamente, aumentando a distância que os segundos levam para passarem, e com isso, sua dor tomava dimensões imensuráveis.

Ele foi o último a chegar à árvore, e o seu pacote redondo dava a impressão de que o seu presente seria uma bola. Contudo era mais do que isso, era “a bola” de capotão que pertenceu ao seu avô. Fosse a data outra, ele ficaria eufórico; no entanto, era Natal. 

E, no Natal, o presente a se receber precisava ser o que fora pedido no bilhete colocado na meia, endereçada a papai Noel. E ele sabia que papai Noel lera: “uma bicicleta azul com aros amarelos e selim grafitado de girassóis”. Era o seu presente de Natal. Nenhum outro.

Continua...

07 agosto 2010

O menino encantado - Parte 1

Era uma vez, um menino que tamborilava com o dedo indicador sua bola de gude antes de jogá-la no chão, e se inquietava por ela não retornar à sua mão. A vida seguia o seu curso normal, a Terra girava em torno do Sol e a Lua em torno da Terra. Somente ao menino essa normalidade não era perceptível. Também pudera, ele tinha apenas três anos. 

O menino continuou no seu mundo silente, às vezes perturbado por um canário pousado em uma árvore, observando-o ali parado, sem entender por que ele esperava a bola de gude subir por sua própria vontade. O canário de plumagem amarela entoou uma canção, lhe dizendo, menino bobo, a bola não subirá. 

Outras vezes era perturbado pelo vento, que lhe dizia, suavemente por entre as moitas, não percebeu, menino bobo, a voz do canário que eu lhe trouxe? O liame do mundo real ao mundo encantado dos pássaros e vento, o menino só perceberia muitos anos depois.

O Senhor do tempo acionou a engrenagem, girando a roda do tempo, e o menino, acometido pela espera de algo que nunca aconteceria, continuou a tamborilar com o dedo indicador a bola de gude para depois jogá-la no chão. Esperou alguns segundos e, como ela não voltava, foi buscá-la, soltando-a em seguida, amiúde. Cansado, o Senhor do tempo deixou-o cobrir o menino com o manto do envelhecimento. 

Faltavam poucos dias para o Natal quando algo incrível aconteceu. Não foi exatamente como o menino queria, mas sim como ele menos imaginava.

Das coisas que fazemos quando criança, há pelo menos uma que nos acompanha pelo resto da vida, sem disso nos darmos conta. Por mais que o Senhor do tempo tivesse acionado a engrenagem do tempo, naquela cidade o que menos se notava era a passagem do mesmo. 

Estava lá a mesma árvore onde pousou o canário que entoou a canção levada pelo vento. Estavam lá, também, o mesmo canário de penugem amarela e o mesmo vento trazendo a voz desse canário dizendo, menino bobo, a bola não subirá. 

Somente o menino não era o mesmo. Já havia completado dez anos, e ainda trazia no bolso a mesma bola de gude, agora trincada pelo manto do envelhecimento. Era um rapaz (outrora fora menino, pois é da natureza o menino primeiro virar rapaz para depois virar homem), no entanto, mantinha-se, em seu interior, criança.

Ele soltou a bola de gude, esperou alguns segundos para que ela retornasse por vontade própria e, como não retornou, repetiu a mesma ação. Nunca deixou de ser menino, por isso, nunca deixou de ser feliz.

Rapaz bobo, não está me vendo? Quando ele ouviu essa voz, vinda não sabia de onde, meneou a cabeça procurando na mesma direção por sua bola. Não achou nem uma nem outra. Ao olhar para cima, o halo do sol no centro do céu cegou-o por uns instantes. Abaixando os olhos teve a impressão de ouvir uma formiga repetir: rapaz bobo, não está me vendo?

Continua...