03 agosto 2010

Era uma vez...

                                    
Era uma vez um escritor de contos tristes. Ele tinha o dom de conhecer a morada final de cada um dos seus textos - e elas sempre provocavam lágrimas emocionadas nos olhos de quem as lesse. O começo, esse ele ia procurando. Às vezes, olhava embaixo dos bancos do ônibus que, diariamente, tomava. Encontrava uma tampinha de garrafa, duas moedas de vinte e cinco centavos e, surpresa, um bom começo para o final que já estava fadado.

Apesar de ser o final o seu começo, o escritor de contos tristes buscava outro fim, afinal o fim da vida, no fim das contas, por si só, já é triste. Ele ia tropeçando em “T”, “R”, “I” e “S”, e, por mais que tentasse desviar-se, não conseguia, pois os garranchos sobre a linha o levavam ao encontro, novamente, do “T”. Esse o impulsionava em um chute, como se as letras tivessem pernas, nos braços do “E”, “Z” e “A”. Seu ponto final era a desalegria. 

Do outro lado da mesma cidade, amanhecia a escritora dos contos de fadas. A ela cabiam todos os começos encantados. Ela sabia que, começando com "era uma vez" - fosse nas letras ou na imaginação - a própria história iria se encaminhar para um final feliz. Habitar o mundo da fantasia, da emoção que provoca alegria, essa era sua única regra para tudo o que escrevia.

E, num dia encantado, esses dois escritores "tropeçaram" um nas letras do outro. A Escritora, vaidosa, esticou o vestido, procurando, impacientemente, retirar-lhe os amassados. O Escritor riu, pela primeira vez, vendo graça na impaciência da menina encantada. A Escritora, virando a boca de lado, disfarçava, na verdade, um riso contido, encabulada que estava por ver tão profundo conhecedor das palavras ajudando-a a se equilibrar nas letras.

Os dois começaram a se conhecer. Viam-se através de suas linhas. Sentiam-se por meio de suas frases. A Escritora achava lindo o jeito que o Poeta contava aquelas tristezas. "quantas vidas podem caber nessas histórias?" O Escritor emocionava-se cada vez que a Poetisa semeava um "feliz" aqui e ali ao longo do seu texto. "quantas alegrias podem explodir nessas histórias?"

Vírgula. Era como se ele houvesse tropeçado em uma vírgula, escorregado sobre um til, e diante de um ponto de exclamação, ele, o ponto, significasse o que ele, o escritor, estava sentido ao ler o primeiro texto da escritora. 

O Escritor dos contos tristes buscou o abracadabra, o pirlimpimpim, o plunct, plact e zum. Ele queria uma palavra mágica que o transportasse para o mundo da Escritora de contos de fadas. Ou então, que uma lágrima sua fizesse surgir uma fada madrinha, que tornasse possível a fantasia de um ogro de se casar com uma princesa. 

Enfim, até a possibilidade de seus contos serem uma mentira, e talmente o boneco de madeira que ao parar de mentir se transforma em gente, os seus contos, sofrendo uma transformação, pudessem ter o seu "felizes para sempre". Mas qual o caminho, imaginado ou real, poderia levar à terra de Encanto?

A amizade foi se fortalecendo. E os textos, começaram a ser compartilhados. Como as reticências têm o significado de continuação, ele esperava que o texto dela assim terminasse para o adentrar, na esperança que o ponto final nunca fosse encontrado. Afinal o que queremos da vida, real ou imaginada, é um fim com um ponto de exclamação pós-posto a um "viveram felizes para sempre!"

Porém, uma pergunta cismava em angustiá-lo: seria possível adentrar o mundo encantado da escritora e vivenciá-lo? Cabia a escritora dizê-lo, ou quem sabe, escrevê-lo, porque ao Escritor não importava quantas vidas pudessem caber nessas histórias. O que importava, de fato, é que as histórias pudessem ser misturadas, tal qual água e óleo, pois somente na literatura essa possibilidade é plausível. Ou não? 

A Escritora, prosa que só, fazia-se de muito ocupada. Percebia a atenção que o Escritor lhe dispensava, mas, encabulada, não conseguia acreditar que alguém que escrevia sobre a vida de forma tão intensa, tão profunda, pudesse se interessar pelas palavras de sonhos e cantos que ela, tão inocente, contava. O escritor não sabia a admiração que a Escritora lhe tinha.

A Escritora foi percebendo, ao poucos, a alegria explodindo no rosto do Escritor após cada texto seu lido. Percebeu o quanto ele queria adentrar o seu mundo. Se ao menos ela lhe contasse como!

E ela lhe contou. A pequena Poetisa foi mostrando ao Escritor o poder contido nas palavras. Tanto na vida real, como na imaginada, a palavra pode obrar milagres. Não demorou muito para que as palavras nos textos da Escritora abrissem a porta que ele tanto ansiava. Ele passou a enxergar com os olhos da alma.

O Escritor, antes de contos tristes, ficou em pé para mergulhar na água do saber. Sabia que não tinha apenas a intenção de se molhar, mas se inundar de felicidade. Porém, oleoso, escorregou em um acento agudo, talvez fosse uma crase, ou teria sido um acento circunflexo? Teve a certeza que foi um til ao olhar para trás.

Então se equilibrou na ponta do “E”, tomou impulso e segurou nas pernas do “N”, deu um mortal e escorregou pelas curvas da letra “C”. Tropeçando em uma cedilha, ele pensou ter se perdido, contudo caiu em cima do “A”, pulou no dorso do “N” e equilibrou-se na cabeça do “T”, fechou os olhos e mergulhou no centro do “O”.

Caiu de olhos abertos em uma terra florida e aromática. Sempre dia, pirilampos não deixavam anoitecer. Pássaros entoavam canções de alegrar corações. Duendes, gnomos, anjos, querubins, serafins, príncipes, princesas, reis, rainhas e seres de diferentes formas e tamanhos davam encanto ao lugar. Sentada em uma cadeira, uma fada com uma pena na mão e papéis – metade em branco, metade escrito – sobre uma mesa, escrevia.

Ao se aproximar, ele percebeu que era a Escritora de contos de fada. Ele se jogou, felicíssimo, em seus braços e ela o recebeu como irmão. Ao ser abraçado por ela, ele percebeu que não era mais gente, mas um boneco de madeira. Deu pouca importância ao fato, o que quer que fosse, ele encontrara a felicidade, e isso já lhe bastava.

Sentados, ele com o queixo sob a palma da mão, ela folheando as páginas do seu livro de contos de fada, liam juntos. Três lágrimas desceram dos olhos dele, significando as reticências do final do livro. Foi então que ele percebeu que através da leitura tinha se transformado em gente, ainda melhor do que já havia sido.

Não importa qual o final da história. Menos ainda se um fim não tiver. Quando se vive um "felizes para sempre", o fim, afinal, pouco importa. Irmanados, de mãos dadas, talmente criança pulando amarelinha, eles pularam as reticências, uma a uma, e começaram uma nova história, assim:

Era uma vez a água e o óleo, misturados...

5 comentários:

  1. Eu acredito! MANDA MAIS !

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  2. Misturas muitas vezes dão certo. As diferênças atraem, trangridem, emocionam e dão prazer.

    Bjs.

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  3. Olá,

    Seja bem vindo(a)... A lei natural: Os opostos se atraem...

    Abraços :)

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  4. Olá! Que conto diferente! Só não tenho certeza se os opostos se atraem mesmo. Obrigada pela visita e pelo link. Tb está em meus favoritos. Beijão.
    Mary

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  5. A Palavra-Milagre, esse sentido feliz, em qualquer circunstância... Obrigada, adorei vir conhecê-los e vou acompanhar "O menino encantado", estou adorando! Beijos.

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Como água e óleo se misturam, derrame aqui suas opiniões também!