21 setembro 2010

A família encantada - Parte 7



- Rapaz, como você cresceu!

- Eu sou menino, não sou rapaz... E, nos conhecemos de algum lugar?

Rindo, como se não tivesse ouvido aquela resposta, o Senhor continua a falar:

- Rapaz, você sabe por que está aqui?

Pensando o mais rápido que pode, Fauser começa a responder assim:

- A princípio, achei que iria me esconder, fugir quem sabe. Mas, ao ver todas essas imagens, entendo que não me faltou amor - faltou TEMPO para que meus pais o dessem a mim. Ai, Senhor, peço-lhe ajuda! Como faço para que meus pais entendam que todo o sacrifício, todo o esforço que fazem por mim, não é nada se não tiver também o seu amor?

- Sabia que você iria entender, Fauser. Sabe, você tem os olhos de seu pai.

- O senhor conhece o meu pai?

- Sim, sim, ele era um rapaz, mais velho do que você, e fizemos esse mesmo passeio juntos. Eu sou o Senhor do Tempo, e vim lhe mostrar que sempre há tempo para consertarmos aquilo que não está funcionando tão bem quanto deveria estar.

Agora, segue de volta para sua casa, filho, mas não se esqueça de levar contigo os três objetos que encontrou na garagem. Ainda se lembra deles?

Apertando a bola de gude com toda força em sua mão, o menino respondeu: Sim, me lembro bem de cada um deles. Posso levar a formiga também?

Essa, já subindo no manto do Senhor do Tempo, deu uma risada e respondeu-lhe assim:

- Meu anjo, mas não percebeu que eu já estou lá dentro de sua casa, junto de você, desde que você era um bebê?

E, brilhando em uma bola de luz, abandonou sua forma pequena e franzina de formiga, e transformou-se em Baba.

O dia já ia alto, e, quando Fauser entrou em casa de mãos dadas com Baba, seus pais pareciam ter sido atropelados por um caminhão.

- Onde você estava? Disse-lhe a mãe, correndo em busca de seu abraço.

- Procuramos em toda a vizinhança por você, Fauser! Chamamos até a polícia! E, caindo a seus pés, seu pai, não segurando a emoção, rompeu em lágrimas.

- Está tudo bem agora, disse-lhes Baba, acalmando aos três. Encontrei-o na garagem, dormindo ao lado desses objetos. Vocês os reconhecem? E, dando um passo ao lado, deixou-os ver a bicicleta grafitada e a bola de capotão.

Cacau e Mel entreolharam-se, e um arrepio subiu-lhes por toda a espinha.

Continua...

13 setembro 2010

A família encantada - Parte 6


A formiga, prosa que só, embaixadora do Senhor do tempo, olha o menino e diz:

- Mas você cresceu! Já é um rapaz!

- Eu não sou rapaz. Eu sou menino...

Sorrindo, todos os quatro percebem que a ajuda certa fora providenciada...

- Está bem, não vamos perder tempo. Agora, atenção: no três nós pulamos.

- No quê?

- Na bola, ora!

- Aquela que está parada ali?

- Isso mesmo, vamos, não há tempo, daqui a pouco o portal fecha.

- Peraí, vou levar a bola de gude. 

Pendurando-se na barra da calça de pijama de Fauser, a formiga chuta a bola de gude para o alto, a tempo de ser alcançada pela mão esquerda do menino. E uma descarga elétrica boa passou por dentro da bola, que, mesmo sem lábios, sorriu...

- Chegamos.

- Mas estamos no mesmo lugar!

- Não foi o lugar que mudou, foi o tempo!

Fauser olhou ao seu redor. Não reconheceu a casa. Era a mesma em que morava, mas estava... vazia. De repente, a porta abre e entram seus pais. O menino quase sai correndo para abraçá-los, mas percebe que não está em cena. Estranhamente assiste a algo que está guardado no passado, mas que, de alguma maneira, ele parecia lembrar.

Seus pais brigavam. Era evidente a angústia que sentiam. A mãe balançava papéis em suas mãos, o pai levava as mãos a cabeça, em sinal de desespero. A barriga da mãe grande, quase no final da gestação.

O pai bate a porta. A mãe cai sentada, aos prantos, alisando a barriga... Nesse ponto, Fauster sente seu próprio coração acelerar:

 - Ela me ama!!

Num apagar e acender de luzes, o menino agora vê seu pai no trabalho. Que horas são, não vejo mais ninguém! Não há luz fora da janela. O relógio roda, descontrolado, as horas não param, o calendário não para, tudo gira em um caleidoscópio acelerado, mas uma imagem, de repente, congela-se: sobre a mesa de trabalho, Cacau tem uma fotografia de Mel e o pequeno bebê nos braços.

- Ele também me ama!!

Um sol, no meio da noite, brilha. E, de seu halo, surge a imagem de um senhor, muito velho, mas de uma presença imponente.

Continua...

08 setembro 2010

A família encantada - Parte 5

(ilustração de Gabriel Machado - veja aqui)

Mas essa noite não era como as outras. Após poucos minutos de sono, um barulho diferente fez com que Fauser acordasse. Ainda esfregando seus pequenos olhinhos com sono, foi à janela, e, arregalando os seus olhos de jabuticaba além da grade de proteção, não acreditou no que estava vendo.

Uma formiga levantava a porta da garagem!

A formiga, amiga de infância de Cacau, estava atarefada. O Senhor do tempo havia a encarregado de buscar uma solução para  vida sem amor que Cacau e Mel estavam levando. Mas, para isso, era preciso que forças fossem unidas. A formiga precisava encontrar os três objetos inanimados que mais amavam àqueles dois cabeças-duras! E, na garagem da casa,  achou a bola de capotão descosturada numa caixa de sapato, a bola de gude como olhos de uma das bonecas de Mel e a bicicleta entre os ferros velhos.

- Que desperdício! Mas, não há tempo para lamentações! O portal não abre muitas vezes e ainda há muito o que fazer! O que vocês estão precisando é de água para encantarem. E, conforme ia dizendo essas palavras, as três receberam os esguichos de água vindos da mangueira do jardim.

O encanto começava a fazer efeito. Sacudindo-se tal qual cachorro, a bicicleta reviveu; a bola de capotão, apesar de descosturada, espirrou dando sinal de vida; e a bola de gude saltou do olho da boneca e saiu rolando pela grama molhada, deixando um rastro de alegria.

 As três disseram em uníssono:

- Você voltou!!!

- Sim, sim, mas não temos tempo, aliás, temos o tempo que o Senhor do tempo nos concedeu. E é pouco, muito pouco, mas pode operar milagres na vida dessa família. E pensar que Cacau e Mel eram tão atenciosos com vocês! Tsc, tsc, tsc... Tínhamos certeza de que seriam bons pais. Agora vocês me respondam, onde foi que eles erraram e entraram nesse caminho sem vida, sem alma?

A bola de gude, desde sempre a mais falante, e de longe a mais pessimista, fez um relato breve, sempre é claro, do seu ponto de vista:

- Mas ora essa, dona formiga, eu disse que os dois iriam nos esquecer. Essas coisas de homem e mulher atrapalham muito o discernimento das pessoas. Pois se acreditam, com toda a força, que para ser grande é preciso esquecer-se de quando era pequeno! E eu agora é que lhes pergunto: como eles podem criar uma criança se perderam sua essência?

A bicicleta, sempre suave e gentil, tão magoada que estava, resolveu participar também da conferência:

- Veja só, dona formiga, se é possível tal estapafúrdio: Eu aqui, linda, girassóis grafitados e azul da cor do céu, e eles comprando coisas que precisam ficar presas na parede! Fauser NUNCA nos viu! Acho mesmo que (agora ela está sussurando, pois detesta fazer fofoca) jamais andou num selim de bicicleta!

A indignação foi geral. Um festival de "assim não dá", "isso precisa acabar", foi ouvido, até que, numa surpresa danada, a bola de capotão pede a palavra:

- Eu fui presenteado a Cacau no mesmo dia em que ele conheceu a Mel. Pude ver em seus olhos o amor brotando. E o amor é o gesto sublime que eleva os seres humanos. A vida, no entanto, os engoliu. Na máquina que, hoje, gira o mundo, não há mais tempo para ser feliz - a menos que esse artigo esteja à venda em uma prateleira, perto dos aparelhos eletrônicos.

E, esses subterfúgios escondem a triste realidade desse casal que, outrora, era criança: eles desaprenderam a amar. Esqueceram-se que é o sentimento mais completo, e no entanto o mais simples de se dividir.

Na ânsia de tudo prover ao menino Fauser, deixaram de, em primeiro lugar, oferecer-lhe, sem limite ou racionamento, o presente que todos mais anseiam: o AMOR.

E, prezados amigos, posso lhes garantir. Amor há - cabe a nós ajudá-los a encontrar.

- E o que vocês estão ainda fazendo aí? Um Fauser, de pijamas e descabelado, com os olhos arregalados, ouve o final do, muito bem elaborado, discurso da bola de capotão.

Vamos, precisamos encontrar o AMOR. Por mim...

Continua...

03 setembro 2010

A família encantada - Parte 4

(Ilustração: Mordillo)

Sobre o céu, a noite trouxe o manto que escureceu o dia. Pipocou-o com estrelas, clareando-o. Chamou seu amigo vento para que soprasse as nuvens que teimavam em permanecer sob a sua obra de arte, e com o dedo indicador fez uma bola no canto do céu. Com um suave beijo, se fez luz. A noite enluarou-se.

A babá, admirando a beleza da noite, não fechou a janela do quarto do Fauser, encostando apenas a cortina. Quando se encaminhava para a porta, Fauser segurou-a pela mão...

 - Por que papai e mamãe não me amam, Baba?

- Eles amam sim, meu anjo! Eles são muito ocupados, precisam trabalhar.

- Por que eles precisam trabalhar, Baba?

- Vamos fazer uma brincadeira. Feche os olhos. Agora, imagine-se sem tudo isso aqui. Você seria feliz, meu anjo?

- Sim, se eles me amassem. Baba, quer ser minha mãe? Eu te amo tanto.

Os olhos da babá marejaram. A emoção a silenciou. Fauser continuou falando.

- Baba, meu sonho era viver em um mundo encantado, ter uma fada madrinha. Mas isso não existe, não é verdade, Baba?

- Existe sim, meu anjo. Basta acreditar. – Disse entre lágrimas.

- Então você é minha fada madrinha?

Desfazendo-se em lágrimas, a babá o cobriu, beijou o seu rosto e sussurrou em seus ouvidos:

- Sim, meu anjo, eu sou, mas isso fica sendo nosso segredo. 

Ao sair, ela encostou a porta.

Fauser levantou-se da cama, abriu a porta e espreitou pela fresta. O corpo da babá fulgia e de sua mão pendia uma varinha de condão. Minha fada madrinha! Fauser pensou alto. Voltou para a cama e adormeceu.

Continua...