07 dezembro 2010

Entrelaçados




Era uma vez uma magricela. Dois pedais e um guidão prateado comprido, como se duas orelhas fossem. Aro 26. Própria para crianças grandes. Sabe como é? Crianças que já venceram a etapa das rodinhas, são sabidas e compridas, iguais àquela magricela. Prazer, eu sou a Bicicleta.
 Já de fabrica tinha um sonho. Ser pintada branquinha, com decalque cor de rosa de flores suaves em sua fuselagem. Desejava, ansiava, queria com todas as forças, ser de uma menina.

Era uma vez um menino, braços abertos para o mundo e pernas espichadas querendo dar passos maiores. Cansara-se dos carrinhos de plásticos comprados nas lojas de R$1,99, que, ao bater na parede, esfacelavam mortos em vários pedaços. Cansara-se também dos brinquedos feitos pelo seu avô com a madeira do buriti. Não tinham vida, não tinham encanto. Criança grande que já vencera a etapa das ilusões ansiava, queria, deseja um presente melhor. Pensara em um carrinho de rolimã, mas quem disse que tinha coragem de nele andar? Andaria, isso sim, em uma bicicleta. Prazer, eu sou Caio. A magricela deveria ser branca com decalques prateados de serpente. Sabe como é? Criança grande se impõe pelo visual. Tinha que ser uma magricela branca prateada de serpentes. Repetiu para si mesmo para se convencer de que o sonho se realizaria.


Estranhou quando seu decalque veio prateado. E, mais ainda, quando percebeu que sequer flores eram. Estava mais para uma serpente. Será que meninas gostam de prateado? Pensou, fazendo um muxoxo. Por sua correia não passou, nem por um minuto, a possibilidade de vir a ser de um menino. 
Foi colocada em um caminhão. Quente, apertado, sofreu a deslumbrada. Quando vou chegar, em que estrada isso esta me levando?
 Parou. Colocada em uma vitrine muito simples, não podia acreditar no que via. Apenas ruas de terra. Para o lado que virasse, nem um asfalto, nem um paralelepípedo. Terra. Vermelha. Subindo poeira.
 A infeliz da bicicleta tentava, em vão, se consolar. Não faz mal, dizia-se, assim que a menina mais linda dessa cidade me vir, irá subir em meu selim e juntas faremos piqueniques à beira do rio, iremos visitar suas amigas que moram perto. Durante o ano, seremos companheiras rumo à escola. Nas férias, faremos longos passeios em estradas cercadas por flores. E suspirava a sua espera.

O pai do Caio chegou em casa com o cansaço de todos os dias e a desilusão de não poder realizar o sonho do filho. No envelope estava escrito: décimo terceiro salário. Ele abriu o envelope, molhou os dedos com a língua e longe dos olhos do filho contou o dinheiro. Já sabia o valor, se o recontava era na esperança de uma nota a mais ter sido colocada por descuido pelo funcionário do departamento de recursos humanos. O sonho seria adiado, por quanto tempo nem ele sabia. Veio a sua cabeça o seu tempo de criança, brincando com ossos da rabada do boi, ou então, fazendo pipa com o papel de embrulho do pão. Chorou por saber que não realizaria o sonho do filho, chorou ao lhe contar e mais ainda ao vê-lo chorando.
 

O Senhor do Tempo acionou a engrenagem, e a linda bicicleta foi ficando esquecida no canto da loja. Muito cara, era a resposta que mais ouvia. No início, aprumava-se toda quando via uma menina, qualquer uma, entrando pela porta. Agora, mais parecia cachorro velho, que não levanta a orelha nem quando seu dono o chama para comer. 
E, de tanto esperar, viu as muitas voltas que a Terra deu ao redor do Sol. E viu as muitas fases da Lua enquanto ela percorria seu caminho ao redor da Terra. Sendo feita de metal, era de se admirar o quanto entendia as coisas simples da vida... 

Alguns dezembros depois, e o pai do Caio olhava o relógio tiquetaqueando descompassadamente, esperando ser chamado pelo patrão. Sofria horrores enfurnado no sofá da sala de espera por saber que quem ali era chamado saía demitido. Quando ouviu a secretária dizer, secamente, o próximo, ele gelou dos pés à cabeça. Entrou na sala cabisbaixo, com as mãos sobrepostas segurando o boné. Os dois envelopes estavam em cima da mesa, e de soslaio ele viu escrito em ambos o seu nome. Logo abaixo do nome estava escrito décimo terceiro salário em um e prêmio no outro. Foi surpreendido pelo abraço do patrão agradecendo a sua dedicação ao trabalho. Mais surpreendido ficou quando em casa contou o dinheiro do envelope prêmio, e um bilhete explicando o motivo do prêmio. Curto e simples, no bilhete estava escrito: “A sua bondade operou o milagre em mim. Obrigado”. 


Já estava coberta da poeira vermelha que tanto desgostava quando aquele senhor entrou na loja. Promoção. Promoção? Pois é, foi esse o único jeito que o dono da loja achou para se livrar da magricela.
Empurrada estrada abaixo, chegou a se animar: como será a menina por quem irei me apaixonar? Desespero, frustração: não era uma menina... 
Odiou-lhe com toda a graxa que ainda restava em si. Nunca irá me montar, prometeu-se. Mas ele a montou. Ela, rebelde, o derrubou. Audácia! 
O menino, transbordando numa alegria que desconhecia, sequer percebeu a infame rebeldia. Montou-a de novo. Ela, pirracenta, derrubou-o novamente.

Caio trazia em si um sol de alegria. Não havia nenhuma afronta que lhe fizesse noite. Sabia, com a pureza que apenas um coração sem maldades consegue entender, que teria que conquistar a magricela. Caio levantou-se do chão, sacudiu a poeira do corpo e deu a mão à ela. Ela, a contragosto, ofereceu o seu guidão. Ele riu para ela e ela enfurnada em seu orgulho fechou-se para ele virando um pouco o guidão. Sem dar importância a sua teimosia, Caio, suavemente, trouxe o guidão de volta. 

Silentes, caminharam por alguns minutos, respeitando-se. Caio vez ou outra passava uma das mãos em seu selim na tentativa de amansá-la. A magricela ora freava, ora se dava ao carinho. Poucos minutos depois, Caio estava com as duas mãos no guidão, um dos pés no pedal e o outro no chão dando impulso. Ao ganhar velocidade, ele passou a perna sobre a magricela, sentou no seu selim, colocou o outro pé no pedal e tomado de alegria não percebeu que a magricela, finalmente, afeiçoava-se a ele... 


4 comentários:

  1. Milagre!
    Voltaram!
    E agora montados numa "magrela", uau!
    Bjs.

    ResponderExcluir
  2. Ternura, muita ternura, eis o que transpira da história, mesclada de maravilhoso encantamento!
    Adorei!

    Beijo :)

    ResponderExcluir
  3. São história assim que precisamos para não perdemos o qto da inocência infaltil é salutar para o seu desenvolvimento como ser humano. Abçs e bjos.

    ResponderExcluir
  4. Oiê!

    Então é Natal! Aconteceu com meu filho mais novo, depois de alguns tombos ele aprendeu a andar,no entanto, poucos dias depois a abandonou e a bicicleta (novinha) ficou até que fora doada para outra criança...

    Linda estória (gostosa de se ler)!

    Grande abraço (mas espero que tenha continuação!)
    :)

    ResponderExcluir

Como água e óleo se misturam, derrame aqui suas opiniões também!