17 dezembro 2010

Então é Natal...


Pedro desde os três anos morava na rua. Hoje, aos sete anos, passava fome e frio, mas nunca perdera a fé em Cristo. Dezembro chegou e ele não entendia o porquê das luzes de Natal estarem armadas e acesas nas ruas. Provavelmente  o espírito de Natal está mais ligado ao comércio do que à família, apenas remotamente inspirado no nascimento de Cristo. Família, aliás, sempre fora o seu único pedido em seus parcos Natais, e o presente que Papai Noel nunca lhe trouxe. De alguma forma ele mantinha a esperança, pois por mais pobre que fosse, sem fé ele seria um miserável. Com certeza Cristo estava preparando um lar para ele, e viria pelas mãos de Papai Noel.

Quantas vezes ele esteve perto de ter um lar, mas sempre era rejeitado para adoção por ser negro. Em sua cabeça de criança essa divisão de raças nunca fizera sentido, pois ele era, como todas as outras crianças que conhecia, da raça humana, a única que para ele existia. Para não se desumanizar, em um dia de coragem e tristeza imensos, ele havia fugido do orfanato. 

Parado diante daquela loja que vendia eletrodomésticos à prestação para o Natal, assistindo aos televisores ligados, ele percebia o porquê de ser rejeitado: todos na tela eram brancos, ricos e belos. Se porventura houvesse um negro, necessariamente a ele correspondia uma das três funções a ele permitidas: ou era escravo, empregado desqualificado, ou, ainda pior, bandido. E pensar que a raça é humana apesar das matizes. Com uma imagem desta quem adotaria uma criança de cor? As lágrimas vieram ao rosto. Saindo dali Pedro sentou-se em um banco na praça admirando as luzes de Natal e com esperança no coração desejou, mais uma vez, que Papai Noel lhe desse uma família.

     Antevéspera de Natal.

Não muito distante da praça em que Pedro dormia, pai e filho discutiam em um apartamento de luxo. O pai, de nome Isaias, não compreendia a frieza do filho que tão cedo perdera a ilusão e desprezava a figura de Papai Noel. Isaias, entristecido, lembrava de que quando criança colocava o bilhete no pé de meia pedindo um presente a Papai Noel; ele fez isso até os dez anos, e sempre os presentes estavam debaixo da árvore de Natal. 

Paulo, o filho, com oito anos não mais aceitava aquele ritual, ele sabia que era o próprio pai quem presenteava e não Papai Noel, então para que continuar com a farsa? Quando Isaias ouviu a palavra farsa saindo da boca do seu filho entristeceu-se de vez e, sem Paulo saber, juntou todos os seus brinquedos recebidos no Natal e colocou-os em um saco. Dirigiu-se para a praça mais próxima e a primeira criança que ele viu foi Pedro, dormindo. Deixou o saco com os brinquedos perto dele, e em lágrimas subiu para o seu apartamento.

     Na manhã seguinte...

Paulo desceu com a babá para jogar bola na praça, quando viu Pedro brincando com um dos seus brinquedos. Paulo perguntou a Pedro de quem ele os recebeu e Pedro respondeu que fora Papai Noel. Seguiu explicando, com a lógica das crianças que nunca desistem de seus sonhos, que Papai Noel lhe confiou tantos brinquedos porque esses deveriam ser de crianças que não obedeceram aos seus pais. Paulo perguntou onde ele morava e Pedro respondeu que morava ali na praça, pois não tinha pais. Pedro perguntou qual o presente que Paulo havia pedido ao Papai Noel, e este lhe respondeu que não ganharia nenhum, pois não havia pedido. Pedro,  feliz por poder fazer feliz a um menino no dia de Natal, deu todos os presentes para Paulo, explicando-lhe que ele não teria onde guardá-los. Paulo perguntou se ele não ficaria chateado em não ficar com nenhum brinquedo, a que Pedro respondeu não, pois Papai Noel aquela noite lhe daria seu presente. Curioso, Paulo perguntou-lhe qual era e essa foi a resposta:

     - Uma família,é claro! Você acredita que ele existe? 
     Neste momento, chegando mais perto depois de presenciar toda a cena, o pai de Paulo reforçou a pergunta:
     - Você acredita filho?

Em lágrimas Paulo respondeu que sim. Pedro perguntou se ele tinha escrito a cartinha e colocado no pé de meia para Papai Noel. Paulo respondeu que não. Pegando-o pela mão, Pedro lhe disse que estava na hora de escrever, pois no dia seguinte seria noite de Natal. Como ali não tinha papel e caneta, todos subiram para o apartamento e lá Paulo e Pedro escreveram no papel o presente que eles queriam ganhar e colocaram no pé de meia e penduraram na janela. Os dois olharam para o céu como procurando o trenó; não viram, mas havia uma estrela com um brilho maior e eles a fitaram com esperança que seus sonhos se realizassem.

Nesta noite Pedro dormiria no apartamento da família de Paulo. Por uma noite ele teria uma família. 

As crianças estavam dormindo quando Isaias e sua esposa foram até a janela do quarto das crianças e pegaram os papeis escritos com os nomes do presente; na de Pedro estava escrito, uma família; na de Paulo, um irmão...


Para quem acredita em Papai Noel sabe que a história não termina aqui, pois embaixo da árvore estará, não importa qual o pedido, o presente. FELIZ NATAL!!

         

07 dezembro 2010

Entrelaçados




Era uma vez uma magricela. Dois pedais e um guidão prateado comprido, como se duas orelhas fossem. Aro 26. Própria para crianças grandes. Sabe como é? Crianças que já venceram a etapa das rodinhas, são sabidas e compridas, iguais àquela magricela. Prazer, eu sou a Bicicleta.
 Já de fabrica tinha um sonho. Ser pintada branquinha, com decalque cor de rosa de flores suaves em sua fuselagem. Desejava, ansiava, queria com todas as forças, ser de uma menina.

Era uma vez um menino, braços abertos para o mundo e pernas espichadas querendo dar passos maiores. Cansara-se dos carrinhos de plásticos comprados nas lojas de R$1,99, que, ao bater na parede, esfacelavam mortos em vários pedaços. Cansara-se também dos brinquedos feitos pelo seu avô com a madeira do buriti. Não tinham vida, não tinham encanto. Criança grande que já vencera a etapa das ilusões ansiava, queria, deseja um presente melhor. Pensara em um carrinho de rolimã, mas quem disse que tinha coragem de nele andar? Andaria, isso sim, em uma bicicleta. Prazer, eu sou Caio. A magricela deveria ser branca com decalques prateados de serpente. Sabe como é? Criança grande se impõe pelo visual. Tinha que ser uma magricela branca prateada de serpentes. Repetiu para si mesmo para se convencer de que o sonho se realizaria.


Estranhou quando seu decalque veio prateado. E, mais ainda, quando percebeu que sequer flores eram. Estava mais para uma serpente. Será que meninas gostam de prateado? Pensou, fazendo um muxoxo. Por sua correia não passou, nem por um minuto, a possibilidade de vir a ser de um menino. 
Foi colocada em um caminhão. Quente, apertado, sofreu a deslumbrada. Quando vou chegar, em que estrada isso esta me levando?
 Parou. Colocada em uma vitrine muito simples, não podia acreditar no que via. Apenas ruas de terra. Para o lado que virasse, nem um asfalto, nem um paralelepípedo. Terra. Vermelha. Subindo poeira.
 A infeliz da bicicleta tentava, em vão, se consolar. Não faz mal, dizia-se, assim que a menina mais linda dessa cidade me vir, irá subir em meu selim e juntas faremos piqueniques à beira do rio, iremos visitar suas amigas que moram perto. Durante o ano, seremos companheiras rumo à escola. Nas férias, faremos longos passeios em estradas cercadas por flores. E suspirava a sua espera.

O pai do Caio chegou em casa com o cansaço de todos os dias e a desilusão de não poder realizar o sonho do filho. No envelope estava escrito: décimo terceiro salário. Ele abriu o envelope, molhou os dedos com a língua e longe dos olhos do filho contou o dinheiro. Já sabia o valor, se o recontava era na esperança de uma nota a mais ter sido colocada por descuido pelo funcionário do departamento de recursos humanos. O sonho seria adiado, por quanto tempo nem ele sabia. Veio a sua cabeça o seu tempo de criança, brincando com ossos da rabada do boi, ou então, fazendo pipa com o papel de embrulho do pão. Chorou por saber que não realizaria o sonho do filho, chorou ao lhe contar e mais ainda ao vê-lo chorando.
 

O Senhor do Tempo acionou a engrenagem, e a linda bicicleta foi ficando esquecida no canto da loja. Muito cara, era a resposta que mais ouvia. No início, aprumava-se toda quando via uma menina, qualquer uma, entrando pela porta. Agora, mais parecia cachorro velho, que não levanta a orelha nem quando seu dono o chama para comer. 
E, de tanto esperar, viu as muitas voltas que a Terra deu ao redor do Sol. E viu as muitas fases da Lua enquanto ela percorria seu caminho ao redor da Terra. Sendo feita de metal, era de se admirar o quanto entendia as coisas simples da vida... 

Alguns dezembros depois, e o pai do Caio olhava o relógio tiquetaqueando descompassadamente, esperando ser chamado pelo patrão. Sofria horrores enfurnado no sofá da sala de espera por saber que quem ali era chamado saía demitido. Quando ouviu a secretária dizer, secamente, o próximo, ele gelou dos pés à cabeça. Entrou na sala cabisbaixo, com as mãos sobrepostas segurando o boné. Os dois envelopes estavam em cima da mesa, e de soslaio ele viu escrito em ambos o seu nome. Logo abaixo do nome estava escrito décimo terceiro salário em um e prêmio no outro. Foi surpreendido pelo abraço do patrão agradecendo a sua dedicação ao trabalho. Mais surpreendido ficou quando em casa contou o dinheiro do envelope prêmio, e um bilhete explicando o motivo do prêmio. Curto e simples, no bilhete estava escrito: “A sua bondade operou o milagre em mim. Obrigado”. 


Já estava coberta da poeira vermelha que tanto desgostava quando aquele senhor entrou na loja. Promoção. Promoção? Pois é, foi esse o único jeito que o dono da loja achou para se livrar da magricela.
Empurrada estrada abaixo, chegou a se animar: como será a menina por quem irei me apaixonar? Desespero, frustração: não era uma menina... 
Odiou-lhe com toda a graxa que ainda restava em si. Nunca irá me montar, prometeu-se. Mas ele a montou. Ela, rebelde, o derrubou. Audácia! 
O menino, transbordando numa alegria que desconhecia, sequer percebeu a infame rebeldia. Montou-a de novo. Ela, pirracenta, derrubou-o novamente.

Caio trazia em si um sol de alegria. Não havia nenhuma afronta que lhe fizesse noite. Sabia, com a pureza que apenas um coração sem maldades consegue entender, que teria que conquistar a magricela. Caio levantou-se do chão, sacudiu a poeira do corpo e deu a mão à ela. Ela, a contragosto, ofereceu o seu guidão. Ele riu para ela e ela enfurnada em seu orgulho fechou-se para ele virando um pouco o guidão. Sem dar importância a sua teimosia, Caio, suavemente, trouxe o guidão de volta. 

Silentes, caminharam por alguns minutos, respeitando-se. Caio vez ou outra passava uma das mãos em seu selim na tentativa de amansá-la. A magricela ora freava, ora se dava ao carinho. Poucos minutos depois, Caio estava com as duas mãos no guidão, um dos pés no pedal e o outro no chão dando impulso. Ao ganhar velocidade, ele passou a perna sobre a magricela, sentou no seu selim, colocou o outro pé no pedal e tomado de alegria não percebeu que a magricela, finalmente, afeiçoava-se a ele... 


18 outubro 2010

A Família Encantada - FINAL

("A Família" - Tarsila do Amaral)

- Oi Vó! O que você está fazendo?

- Oi meu neto! Preparando seu café, ora essa! E rindo, aquela risada gostosa que sempre fora a marca registrada de Mel, continuou a prepará-lo. Vitor, seu avô está lhe preparando uma surpresa, vá lá fora para recebê-la. Vovó já vai logo atrás.

Vitor saiu da casa em direção à garagem, e encontrou um envelhecido Cacau com linha e agulha nas mãos, pelejando com uma antiga bola de capotão.

- Vô! É para mim? Correndo, pulou no colo de Cacau que rapidamente pousou a agulha longe e agradeceu a falta de sono que o fez começar a empreitada muito mais cedo naquele dia. 

- É sim, Vitor! Você gosta de futebol?

- Amo, Vô! Quando eu crescer vou querer ser zagueiro!

- Ah, mas um zagueiro não nasce pronto, precisa de treino. E eu vou lhe contar um segredo: está vendo essa bola aqui? Ela é mágica. Não ria, não estou brincando, não. Existe uma formiga, mas não uma formiga qualquer, uma formiga encantada, que é guardiã de um portal mágico. Essa formiga chama-se Baba, e, se o Senhor do tempo percebe que algo precisa ser concertado, ele envia sua fiel embaixatriz para que, através dessa bola, leve quem dele precisa de ajuda até a sua presença.

Essa bola foi do seu bisavô, que por sua vez a ganhou de seu tataravô.

Olhos arregalados, Vítor encantou-se com a história de bichos, portais e magia que o avô lhe contava.

- E é minha agora, Vô?

- Só se eu puder treinar junto - para garantir que se Baba voltar, terei chance de lhe dar um abraço e agradecer por tudo que ela fez em minha vida...

- Oi pai, oi mãe! Fauser chega com sua esposa, Carolina. O café está pronto, mãe?

- Quase pronto meu amor! Oi Carol! Usou aquele vestido lindo que compramos juntas ontem à noite?

As duas mulheres entram para a cozinha, finalizando os preparativos da mesa lindamente composta para uma refeição considerada banal. Mas, naquele família, nenhum tempo passado juntos era banal.

Fauser reconhece a bola de capotão que Vítor segura em suas mãos, e, com o coração apertado, procura nos olhos do pai a confirmação do que acontecia. Em um sorriso, Cacau entrega ao filho que a mágica estava finalmente passando de mãos.

- Vô, chuta a bola para mim?

- Claro, Vítor. Mel, oh Mel você não disse que havia guardado algo, também, para dar ao Fauser?

Mel e Carol saem da casa, sorrisos, mãos carinhosas. Duas mães em sua plenitude!

Posicionada ao lado de seu grande amor da vida toda, antes de Cacau acertar o chute na bola, Mel sussurra-lhe em seu ouvido: "Menino bobo".

Cacau a olha com a ternura daqueles que muito cedo encontraram o amor de sua vida. Segura-lhe a mão, como fizera na margem do rio a primeira vez que se beijaram.

Mira na bola e acerta o chute. Mas não foi isso que surpreendeu Fauser. No momento que virou-se para exaltar a boa pontaria do pai, que ele teve a honra de poder comprovar nos muitos anos que se sucederam àquela noite encantada com Baba, viu não o senhor a quem tanto amava, mas sim um menino, de não mais de dez anos.

Ao seu lado, uma menina linda, de mãos dadas com ele, anda em direção a Fauser, e lhe rola uma bola de gude toda trincada, mas que, ao chegar em suas mãos, está redonda, polida, como nova.

Saem caminhando, lado a lado, dois jovens, enamorados, com a vida toda pela frente. A observá-los, Baba e o Senhor do tempo. Em sua forma de formiga, agarrada ao manto do Senhor do tempo, Baba pergunta o motivo de remoçá-los.

- Amor igual ao deles tem que ser revivido sempre.

- Mas eles erraram ao abandonar o filho, não se lembra? Se não fossemos nós, a história seria contada tão diferente...

- Formiga, entenda uma coisa, o acerto não advém de pensarmos que estamos acertando, mas se tivermos a humildade de reconhecer que o erro nos proporciona o aprendizado, então, estaremos no caminho certo.

Olhando para trás a formiga piscou o olho esquerdo. Cacau e Mel responderam rindo, certos de que viverão felizes para sempre.


FIM.

08 outubro 2010

A família encantada - Parte 8

(Que vocês apreciem, com alegria, o feriado! Desculpem a demora, mas Óleo e eu estávamos muito enrolados!)







- Meu filho, você estava lá com esses brinquedos? Docemente perguntou-lhe Cacau.

- Foi estranho, meu pai. Eles ganharam vida, falavam entre si. E, depois veio um homem que disse ter lhe conhecido há muito tempo, quando você era criança. E Baba, ela era uma formiga, mas se transformou em gente BEM NA FRENTE DOS MEUS OLHOS.

Nada mais faltava ser dito. Ali, debaixo dos olhos de Cacau e Mel, sua história recontada, através das mãos, sedenta de carinho, de seu filho. Beijaram-lhe a fronte. Deisseram-lhe, descanse, meu filho, e foram com ele até o quarto.

Baba a tudo observou, com o sorriso de canto e os olhos rasos de água que lhe eram tão familiares. Cacau deteve-se no corredor em direção aos quartos. Deu meia volta, dirigiu-se à Baba assim:

- Minha amiga formiga, e eu nem por um segundo desconfiei que era você quem o sono e a vida de nosso filho velava! Obrigado, muito obrigado! Diga ao Senhor do tempo que entendemos a mensagem. Não tornará a se repetir, isso eu prometo. Palavra de menino. Dizendo isso, piscou seu olho direito, o mesmo olhar de jaboticaba gigante que Fauser havia herdado de seu pai.

- Meu trabalho se encerra aqui então, rapaz. Voltando à sua forma de formiga, despediu-se do amigo, mas, antes de partir, ainda teve tempo de acrescentar:

- Lembra-se que eram três, e não somente dois, os objetos de sua infância? Seu filho carrega consigo algo de muito precioso, algo que você, ao longo do tempo, esqueceu-se de amar...

Encontrou Fauser adormecido em sua cama. Podia ver o sorriso em seus lábios, ainda tão pequeninos. Ao ajoelhar-se ao lado do filho amado para beijar-lhe a face, como nunca havia tido tempo para fazer, percebeu algo esverdeado na mão esquerda do menino. Esticou sua mão para alcançá-lo, e, seu coração sobressaltou-se quando viu que era sua bola de gude, aquela que havia dado à Mel em honra de seu amor...

O Senhor do tempo, satisfeito com o que viu, esticou seu manto do tempo e provocou a sua passagem. Nem muito rápido, nem muito devagar. No ritmo certo para que muitos aniversários fossem celebrados, muitas conquistas fossem alcançadas, alguns fracassos fossem superados. A tudo o Senhor do tempo tratou com igual cuidado.

Mas agora já não era Fauser a levantar-se da cama, acordado por um barulho diferente vindo do lado de fora da casa. Era Vitor, o neto de Mel e Cacau, que dormira na casa dos avós para que seus pais pudessem sair. Vitor sentia-se o menino mais amado do mundo, pois seus pais e seus avós desdobravam-se em cuidados com ele. TInha apenas 7 anos, mas a certeza de que era o menino mais amado do mundo.

(continua...)

21 setembro 2010

A família encantada - Parte 7



- Rapaz, como você cresceu!

- Eu sou menino, não sou rapaz... E, nos conhecemos de algum lugar?

Rindo, como se não tivesse ouvido aquela resposta, o Senhor continua a falar:

- Rapaz, você sabe por que está aqui?

Pensando o mais rápido que pode, Fauser começa a responder assim:

- A princípio, achei que iria me esconder, fugir quem sabe. Mas, ao ver todas essas imagens, entendo que não me faltou amor - faltou TEMPO para que meus pais o dessem a mim. Ai, Senhor, peço-lhe ajuda! Como faço para que meus pais entendam que todo o sacrifício, todo o esforço que fazem por mim, não é nada se não tiver também o seu amor?

- Sabia que você iria entender, Fauser. Sabe, você tem os olhos de seu pai.

- O senhor conhece o meu pai?

- Sim, sim, ele era um rapaz, mais velho do que você, e fizemos esse mesmo passeio juntos. Eu sou o Senhor do Tempo, e vim lhe mostrar que sempre há tempo para consertarmos aquilo que não está funcionando tão bem quanto deveria estar.

Agora, segue de volta para sua casa, filho, mas não se esqueça de levar contigo os três objetos que encontrou na garagem. Ainda se lembra deles?

Apertando a bola de gude com toda força em sua mão, o menino respondeu: Sim, me lembro bem de cada um deles. Posso levar a formiga também?

Essa, já subindo no manto do Senhor do Tempo, deu uma risada e respondeu-lhe assim:

- Meu anjo, mas não percebeu que eu já estou lá dentro de sua casa, junto de você, desde que você era um bebê?

E, brilhando em uma bola de luz, abandonou sua forma pequena e franzina de formiga, e transformou-se em Baba.

O dia já ia alto, e, quando Fauser entrou em casa de mãos dadas com Baba, seus pais pareciam ter sido atropelados por um caminhão.

- Onde você estava? Disse-lhe a mãe, correndo em busca de seu abraço.

- Procuramos em toda a vizinhança por você, Fauser! Chamamos até a polícia! E, caindo a seus pés, seu pai, não segurando a emoção, rompeu em lágrimas.

- Está tudo bem agora, disse-lhes Baba, acalmando aos três. Encontrei-o na garagem, dormindo ao lado desses objetos. Vocês os reconhecem? E, dando um passo ao lado, deixou-os ver a bicicleta grafitada e a bola de capotão.

Cacau e Mel entreolharam-se, e um arrepio subiu-lhes por toda a espinha.

Continua...

13 setembro 2010

A família encantada - Parte 6


A formiga, prosa que só, embaixadora do Senhor do tempo, olha o menino e diz:

- Mas você cresceu! Já é um rapaz!

- Eu não sou rapaz. Eu sou menino...

Sorrindo, todos os quatro percebem que a ajuda certa fora providenciada...

- Está bem, não vamos perder tempo. Agora, atenção: no três nós pulamos.

- No quê?

- Na bola, ora!

- Aquela que está parada ali?

- Isso mesmo, vamos, não há tempo, daqui a pouco o portal fecha.

- Peraí, vou levar a bola de gude. 

Pendurando-se na barra da calça de pijama de Fauser, a formiga chuta a bola de gude para o alto, a tempo de ser alcançada pela mão esquerda do menino. E uma descarga elétrica boa passou por dentro da bola, que, mesmo sem lábios, sorriu...

- Chegamos.

- Mas estamos no mesmo lugar!

- Não foi o lugar que mudou, foi o tempo!

Fauser olhou ao seu redor. Não reconheceu a casa. Era a mesma em que morava, mas estava... vazia. De repente, a porta abre e entram seus pais. O menino quase sai correndo para abraçá-los, mas percebe que não está em cena. Estranhamente assiste a algo que está guardado no passado, mas que, de alguma maneira, ele parecia lembrar.

Seus pais brigavam. Era evidente a angústia que sentiam. A mãe balançava papéis em suas mãos, o pai levava as mãos a cabeça, em sinal de desespero. A barriga da mãe grande, quase no final da gestação.

O pai bate a porta. A mãe cai sentada, aos prantos, alisando a barriga... Nesse ponto, Fauster sente seu próprio coração acelerar:

 - Ela me ama!!

Num apagar e acender de luzes, o menino agora vê seu pai no trabalho. Que horas são, não vejo mais ninguém! Não há luz fora da janela. O relógio roda, descontrolado, as horas não param, o calendário não para, tudo gira em um caleidoscópio acelerado, mas uma imagem, de repente, congela-se: sobre a mesa de trabalho, Cacau tem uma fotografia de Mel e o pequeno bebê nos braços.

- Ele também me ama!!

Um sol, no meio da noite, brilha. E, de seu halo, surge a imagem de um senhor, muito velho, mas de uma presença imponente.

Continua...

08 setembro 2010

A família encantada - Parte 5

(ilustração de Gabriel Machado - veja aqui)

Mas essa noite não era como as outras. Após poucos minutos de sono, um barulho diferente fez com que Fauser acordasse. Ainda esfregando seus pequenos olhinhos com sono, foi à janela, e, arregalando os seus olhos de jabuticaba além da grade de proteção, não acreditou no que estava vendo.

Uma formiga levantava a porta da garagem!

A formiga, amiga de infância de Cacau, estava atarefada. O Senhor do tempo havia a encarregado de buscar uma solução para  vida sem amor que Cacau e Mel estavam levando. Mas, para isso, era preciso que forças fossem unidas. A formiga precisava encontrar os três objetos inanimados que mais amavam àqueles dois cabeças-duras! E, na garagem da casa,  achou a bola de capotão descosturada numa caixa de sapato, a bola de gude como olhos de uma das bonecas de Mel e a bicicleta entre os ferros velhos.

- Que desperdício! Mas, não há tempo para lamentações! O portal não abre muitas vezes e ainda há muito o que fazer! O que vocês estão precisando é de água para encantarem. E, conforme ia dizendo essas palavras, as três receberam os esguichos de água vindos da mangueira do jardim.

O encanto começava a fazer efeito. Sacudindo-se tal qual cachorro, a bicicleta reviveu; a bola de capotão, apesar de descosturada, espirrou dando sinal de vida; e a bola de gude saltou do olho da boneca e saiu rolando pela grama molhada, deixando um rastro de alegria.

 As três disseram em uníssono:

- Você voltou!!!

- Sim, sim, mas não temos tempo, aliás, temos o tempo que o Senhor do tempo nos concedeu. E é pouco, muito pouco, mas pode operar milagres na vida dessa família. E pensar que Cacau e Mel eram tão atenciosos com vocês! Tsc, tsc, tsc... Tínhamos certeza de que seriam bons pais. Agora vocês me respondam, onde foi que eles erraram e entraram nesse caminho sem vida, sem alma?

A bola de gude, desde sempre a mais falante, e de longe a mais pessimista, fez um relato breve, sempre é claro, do seu ponto de vista:

- Mas ora essa, dona formiga, eu disse que os dois iriam nos esquecer. Essas coisas de homem e mulher atrapalham muito o discernimento das pessoas. Pois se acreditam, com toda a força, que para ser grande é preciso esquecer-se de quando era pequeno! E eu agora é que lhes pergunto: como eles podem criar uma criança se perderam sua essência?

A bicicleta, sempre suave e gentil, tão magoada que estava, resolveu participar também da conferência:

- Veja só, dona formiga, se é possível tal estapafúrdio: Eu aqui, linda, girassóis grafitados e azul da cor do céu, e eles comprando coisas que precisam ficar presas na parede! Fauser NUNCA nos viu! Acho mesmo que (agora ela está sussurando, pois detesta fazer fofoca) jamais andou num selim de bicicleta!

A indignação foi geral. Um festival de "assim não dá", "isso precisa acabar", foi ouvido, até que, numa surpresa danada, a bola de capotão pede a palavra:

- Eu fui presenteado a Cacau no mesmo dia em que ele conheceu a Mel. Pude ver em seus olhos o amor brotando. E o amor é o gesto sublime que eleva os seres humanos. A vida, no entanto, os engoliu. Na máquina que, hoje, gira o mundo, não há mais tempo para ser feliz - a menos que esse artigo esteja à venda em uma prateleira, perto dos aparelhos eletrônicos.

E, esses subterfúgios escondem a triste realidade desse casal que, outrora, era criança: eles desaprenderam a amar. Esqueceram-se que é o sentimento mais completo, e no entanto o mais simples de se dividir.

Na ânsia de tudo prover ao menino Fauser, deixaram de, em primeiro lugar, oferecer-lhe, sem limite ou racionamento, o presente que todos mais anseiam: o AMOR.

E, prezados amigos, posso lhes garantir. Amor há - cabe a nós ajudá-los a encontrar.

- E o que vocês estão ainda fazendo aí? Um Fauser, de pijamas e descabelado, com os olhos arregalados, ouve o final do, muito bem elaborado, discurso da bola de capotão.

Vamos, precisamos encontrar o AMOR. Por mim...

Continua...