17 dezembro 2010

Então é Natal...


Pedro desde os três anos morava na rua. Hoje, aos sete anos, passava fome e frio, mas nunca perdera a fé em Cristo. Dezembro chegou e ele não entendia o porquê das luzes de Natal estarem armadas e acesas nas ruas. Provavelmente  o espírito de Natal está mais ligado ao comércio do que à família, apenas remotamente inspirado no nascimento de Cristo. Família, aliás, sempre fora o seu único pedido em seus parcos Natais, e o presente que Papai Noel nunca lhe trouxe. De alguma forma ele mantinha a esperança, pois por mais pobre que fosse, sem fé ele seria um miserável. Com certeza Cristo estava preparando um lar para ele, e viria pelas mãos de Papai Noel.

Quantas vezes ele esteve perto de ter um lar, mas sempre era rejeitado para adoção por ser negro. Em sua cabeça de criança essa divisão de raças nunca fizera sentido, pois ele era, como todas as outras crianças que conhecia, da raça humana, a única que para ele existia. Para não se desumanizar, em um dia de coragem e tristeza imensos, ele havia fugido do orfanato. 

Parado diante daquela loja que vendia eletrodomésticos à prestação para o Natal, assistindo aos televisores ligados, ele percebia o porquê de ser rejeitado: todos na tela eram brancos, ricos e belos. Se porventura houvesse um negro, necessariamente a ele correspondia uma das três funções a ele permitidas: ou era escravo, empregado desqualificado, ou, ainda pior, bandido. E pensar que a raça é humana apesar das matizes. Com uma imagem desta quem adotaria uma criança de cor? As lágrimas vieram ao rosto. Saindo dali Pedro sentou-se em um banco na praça admirando as luzes de Natal e com esperança no coração desejou, mais uma vez, que Papai Noel lhe desse uma família.

     Antevéspera de Natal.

Não muito distante da praça em que Pedro dormia, pai e filho discutiam em um apartamento de luxo. O pai, de nome Isaias, não compreendia a frieza do filho que tão cedo perdera a ilusão e desprezava a figura de Papai Noel. Isaias, entristecido, lembrava de que quando criança colocava o bilhete no pé de meia pedindo um presente a Papai Noel; ele fez isso até os dez anos, e sempre os presentes estavam debaixo da árvore de Natal. 

Paulo, o filho, com oito anos não mais aceitava aquele ritual, ele sabia que era o próprio pai quem presenteava e não Papai Noel, então para que continuar com a farsa? Quando Isaias ouviu a palavra farsa saindo da boca do seu filho entristeceu-se de vez e, sem Paulo saber, juntou todos os seus brinquedos recebidos no Natal e colocou-os em um saco. Dirigiu-se para a praça mais próxima e a primeira criança que ele viu foi Pedro, dormindo. Deixou o saco com os brinquedos perto dele, e em lágrimas subiu para o seu apartamento.

     Na manhã seguinte...

Paulo desceu com a babá para jogar bola na praça, quando viu Pedro brincando com um dos seus brinquedos. Paulo perguntou a Pedro de quem ele os recebeu e Pedro respondeu que fora Papai Noel. Seguiu explicando, com a lógica das crianças que nunca desistem de seus sonhos, que Papai Noel lhe confiou tantos brinquedos porque esses deveriam ser de crianças que não obedeceram aos seus pais. Paulo perguntou onde ele morava e Pedro respondeu que morava ali na praça, pois não tinha pais. Pedro perguntou qual o presente que Paulo havia pedido ao Papai Noel, e este lhe respondeu que não ganharia nenhum, pois não havia pedido. Pedro,  feliz por poder fazer feliz a um menino no dia de Natal, deu todos os presentes para Paulo, explicando-lhe que ele não teria onde guardá-los. Paulo perguntou se ele não ficaria chateado em não ficar com nenhum brinquedo, a que Pedro respondeu não, pois Papai Noel aquela noite lhe daria seu presente. Curioso, Paulo perguntou-lhe qual era e essa foi a resposta:

     - Uma família,é claro! Você acredita que ele existe? 
     Neste momento, chegando mais perto depois de presenciar toda a cena, o pai de Paulo reforçou a pergunta:
     - Você acredita filho?

Em lágrimas Paulo respondeu que sim. Pedro perguntou se ele tinha escrito a cartinha e colocado no pé de meia para Papai Noel. Paulo respondeu que não. Pegando-o pela mão, Pedro lhe disse que estava na hora de escrever, pois no dia seguinte seria noite de Natal. Como ali não tinha papel e caneta, todos subiram para o apartamento e lá Paulo e Pedro escreveram no papel o presente que eles queriam ganhar e colocaram no pé de meia e penduraram na janela. Os dois olharam para o céu como procurando o trenó; não viram, mas havia uma estrela com um brilho maior e eles a fitaram com esperança que seus sonhos se realizassem.

Nesta noite Pedro dormiria no apartamento da família de Paulo. Por uma noite ele teria uma família. 

As crianças estavam dormindo quando Isaias e sua esposa foram até a janela do quarto das crianças e pegaram os papeis escritos com os nomes do presente; na de Pedro estava escrito, uma família; na de Paulo, um irmão...


Para quem acredita em Papai Noel sabe que a história não termina aqui, pois embaixo da árvore estará, não importa qual o pedido, o presente. FELIZ NATAL!!

         

07 dezembro 2010

Entrelaçados




Era uma vez uma magricela. Dois pedais e um guidão prateado comprido, como se duas orelhas fossem. Aro 26. Própria para crianças grandes. Sabe como é? Crianças que já venceram a etapa das rodinhas, são sabidas e compridas, iguais àquela magricela. Prazer, eu sou a Bicicleta.
 Já de fabrica tinha um sonho. Ser pintada branquinha, com decalque cor de rosa de flores suaves em sua fuselagem. Desejava, ansiava, queria com todas as forças, ser de uma menina.

Era uma vez um menino, braços abertos para o mundo e pernas espichadas querendo dar passos maiores. Cansara-se dos carrinhos de plásticos comprados nas lojas de R$1,99, que, ao bater na parede, esfacelavam mortos em vários pedaços. Cansara-se também dos brinquedos feitos pelo seu avô com a madeira do buriti. Não tinham vida, não tinham encanto. Criança grande que já vencera a etapa das ilusões ansiava, queria, deseja um presente melhor. Pensara em um carrinho de rolimã, mas quem disse que tinha coragem de nele andar? Andaria, isso sim, em uma bicicleta. Prazer, eu sou Caio. A magricela deveria ser branca com decalques prateados de serpente. Sabe como é? Criança grande se impõe pelo visual. Tinha que ser uma magricela branca prateada de serpentes. Repetiu para si mesmo para se convencer de que o sonho se realizaria.


Estranhou quando seu decalque veio prateado. E, mais ainda, quando percebeu que sequer flores eram. Estava mais para uma serpente. Será que meninas gostam de prateado? Pensou, fazendo um muxoxo. Por sua correia não passou, nem por um minuto, a possibilidade de vir a ser de um menino. 
Foi colocada em um caminhão. Quente, apertado, sofreu a deslumbrada. Quando vou chegar, em que estrada isso esta me levando?
 Parou. Colocada em uma vitrine muito simples, não podia acreditar no que via. Apenas ruas de terra. Para o lado que virasse, nem um asfalto, nem um paralelepípedo. Terra. Vermelha. Subindo poeira.
 A infeliz da bicicleta tentava, em vão, se consolar. Não faz mal, dizia-se, assim que a menina mais linda dessa cidade me vir, irá subir em meu selim e juntas faremos piqueniques à beira do rio, iremos visitar suas amigas que moram perto. Durante o ano, seremos companheiras rumo à escola. Nas férias, faremos longos passeios em estradas cercadas por flores. E suspirava a sua espera.

O pai do Caio chegou em casa com o cansaço de todos os dias e a desilusão de não poder realizar o sonho do filho. No envelope estava escrito: décimo terceiro salário. Ele abriu o envelope, molhou os dedos com a língua e longe dos olhos do filho contou o dinheiro. Já sabia o valor, se o recontava era na esperança de uma nota a mais ter sido colocada por descuido pelo funcionário do departamento de recursos humanos. O sonho seria adiado, por quanto tempo nem ele sabia. Veio a sua cabeça o seu tempo de criança, brincando com ossos da rabada do boi, ou então, fazendo pipa com o papel de embrulho do pão. Chorou por saber que não realizaria o sonho do filho, chorou ao lhe contar e mais ainda ao vê-lo chorando.
 

O Senhor do Tempo acionou a engrenagem, e a linda bicicleta foi ficando esquecida no canto da loja. Muito cara, era a resposta que mais ouvia. No início, aprumava-se toda quando via uma menina, qualquer uma, entrando pela porta. Agora, mais parecia cachorro velho, que não levanta a orelha nem quando seu dono o chama para comer. 
E, de tanto esperar, viu as muitas voltas que a Terra deu ao redor do Sol. E viu as muitas fases da Lua enquanto ela percorria seu caminho ao redor da Terra. Sendo feita de metal, era de se admirar o quanto entendia as coisas simples da vida... 

Alguns dezembros depois, e o pai do Caio olhava o relógio tiquetaqueando descompassadamente, esperando ser chamado pelo patrão. Sofria horrores enfurnado no sofá da sala de espera por saber que quem ali era chamado saía demitido. Quando ouviu a secretária dizer, secamente, o próximo, ele gelou dos pés à cabeça. Entrou na sala cabisbaixo, com as mãos sobrepostas segurando o boné. Os dois envelopes estavam em cima da mesa, e de soslaio ele viu escrito em ambos o seu nome. Logo abaixo do nome estava escrito décimo terceiro salário em um e prêmio no outro. Foi surpreendido pelo abraço do patrão agradecendo a sua dedicação ao trabalho. Mais surpreendido ficou quando em casa contou o dinheiro do envelope prêmio, e um bilhete explicando o motivo do prêmio. Curto e simples, no bilhete estava escrito: “A sua bondade operou o milagre em mim. Obrigado”. 


Já estava coberta da poeira vermelha que tanto desgostava quando aquele senhor entrou na loja. Promoção. Promoção? Pois é, foi esse o único jeito que o dono da loja achou para se livrar da magricela.
Empurrada estrada abaixo, chegou a se animar: como será a menina por quem irei me apaixonar? Desespero, frustração: não era uma menina... 
Odiou-lhe com toda a graxa que ainda restava em si. Nunca irá me montar, prometeu-se. Mas ele a montou. Ela, rebelde, o derrubou. Audácia! 
O menino, transbordando numa alegria que desconhecia, sequer percebeu a infame rebeldia. Montou-a de novo. Ela, pirracenta, derrubou-o novamente.

Caio trazia em si um sol de alegria. Não havia nenhuma afronta que lhe fizesse noite. Sabia, com a pureza que apenas um coração sem maldades consegue entender, que teria que conquistar a magricela. Caio levantou-se do chão, sacudiu a poeira do corpo e deu a mão à ela. Ela, a contragosto, ofereceu o seu guidão. Ele riu para ela e ela enfurnada em seu orgulho fechou-se para ele virando um pouco o guidão. Sem dar importância a sua teimosia, Caio, suavemente, trouxe o guidão de volta. 

Silentes, caminharam por alguns minutos, respeitando-se. Caio vez ou outra passava uma das mãos em seu selim na tentativa de amansá-la. A magricela ora freava, ora se dava ao carinho. Poucos minutos depois, Caio estava com as duas mãos no guidão, um dos pés no pedal e o outro no chão dando impulso. Ao ganhar velocidade, ele passou a perna sobre a magricela, sentou no seu selim, colocou o outro pé no pedal e tomado de alegria não percebeu que a magricela, finalmente, afeiçoava-se a ele...